Na quinta-feira (09), o Supremo Tribunal Federal, após sucessivas interrupções, deu início à leitura de votos acerca da tese do marco temporal, no contexto do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, com repercussão geral reconhecida (Tema 1.031). O recurso foi interposto pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) a partir de acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que aplicou a tese do marco temporal para promover a reintegração de posse, em favor do Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina, de área pertencente à Reserva Biológica do Sassafrás, dentro da qual está localizada a Terra indígena Ibirama LaKlãnõ.
O primeiro voto foi proferido pelo ministro Edson Fachin, relator do recurso, perante o plenário da Corte. O relator deu voto pelo provimento do Recurso Extraordinário, orientando-se pela improcedência da tese do marco temporal, que considera somente as áreas já ocupadas pelos povos originários à data da promulgação da Constituição Federal de 1988 (05/10/1988) como aptas para a demarcação enquanto terra indígena.
Fachin, em aprofundado voto, ressaltou a diferenciação explícita entre a posse tradicional indígena e o instituto civil da posse. À primeira, é conferida a característica central de ocupação tradicional de terras para a formação e a manutenção dos povos indígenas em termos materiais, sociais e culturais, estando aí inclusas as distintas dinâmicas de uso territorial próprias dos costumes e das tradições de cada etnia. Neste sentido, o relator afirmou ser devida a proteção constitucional aos direitos originários dos povos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas independentemente de um marco temporal residido na data de promulgação da atual Constituição Federal. Com isso, propôs a fixação de tese referente ao Tema 1031 da repercussão geral, a qual reproduzimos abaixo:
“Os direitos territoriais indígenas consistem em direito fundamental dos povos indígenas e se concretizam no direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam, sob os seguintes pressupostos:
I - a demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena;
II - a posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos índios, das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e das necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, nos termos do §1º do artigo 231 do texto constitucional;
III - a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988, porquanto não há fundamento no estabelecimento de qualquer marco temporal;
IV - a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da configuração do renitente esbulho como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição.
V - o laudo antropológico realizado nos termos do Decreto nº 1.776/1996 é elemento fundamental para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada, de acordo com seus usos, costumes e tradições;
VI - o redimensionamento de terra indígena não é vedado em caso de descumprimento dos elementos contidos no artigo 231 da Constituição da República, por meio de procedimento demarcatório nos termos nas normas de regência;
VII – as terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos índios o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes;
VIII – as terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis;
IX – são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a posse, o domínio ou a ocupação das terras de ocupação tradicional indígena, ou a exploração das riquezas do solo, rios e lagos nelas existentes, não assistindo ao particular direito à indenização ou ação em face da União pela circunstância da caracterização da área como indígena, ressalvado o direito à indenização das benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé;
X – há compatibilidade entre a ocupação tradicional das terras indígenas e a tutela constitucional ao meio ambiente.”
A partir da tese proposta pelo relator, vislumbra-se a defesa de um compromisso constitucional com a garantia dos direitos fundamentais dos povos originários (em perspectiva coletiva), presentes no território nacional mesmo antes do surgimento do Estado brasileiro. Valorizando dinâmicas socioculturais de ocupação e uso da terra distintas daquelas provenientes da tradição jurídica romano-germânica que permeia o Direito brasileiro, o voto do relator dialoga com perspectivas históricas de luta dos povos indígenas contra processos de extermínio e apagamento social e cultural, tão bem documentadas na historiografia nacional.
Tal corrente de lutas é identificada em movimentos por reconhecimento e afirmação de direitos, pelos próprios indígenas, que precedem à própria feitura da Constituição de 1988; e que hoje se expressam em dinâmicas de reforçada atuação coletiva como é o caso do acampamento que reuniu 5 mil indígenas de 172 etnias em Brasília para acompanhar o julgamento do RE 1017365 e a II Marcha das Mulheres Indígenas, ocorrida também em Brasília, no dia 10/09.
Nesta quarta-feira (15), o ministro Nunes Marques deu voto favorável à tese do marco temporal, abrindo divergência em relação ao voto relator. Em seguida, o julgamento foi suspenso, após pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes, e ainda não tem data certa para ser retomado.
Para maior aprofundamento, o Observatório indica a leitura de dois artigos que contribuem na compreensão da temática apresentada. O primeiro é ““Terra Indígena”: aspectos históricos da construção e aplicação de um conceito jurídico”, de Thiago Leandro Vieira Cavalcante (UFGD), que discute o conceito jurídico de terra indígena, sob perspectiva histórica e antropológica, bem como sua aplicabilidade e as dificuldades geradas de sua não compreensão; o segundo é “Terras ocupadas? Territórios? Territorialidades?”, de Dominique Tilkin Gallois (FFLCH-USP), que contrapõe os conceitos jurídicos de terra e território à percepção das diferentes territorialidades indígenas sob perspectiva antropológica.
Elaborado por Henrique Araujo e Fernandes, com o apoio da equipe do Observatório.