Texto por José Dari Krein [i] e Renata Dutra [ii], publicado originalmente no site do Jornal GGN em 30 de agosto de 2021.
Disponível em: <https://jornalggn.com.br/destaque-secundario/os-jabutis-de-uma-nova-reforma-trabalhista/>. Acesso em: 02 set. 2021.
Senado Federal poderá tomar, na próxima quarta-feira, dia 1/9/2021, uma decisão crucial a respeito do futuro das relações de trabalho no país. Trata-se de deliberar sobre a conversão da MP 1045/2021 em lei.
O Senado Federal poderá tomar, na próxima quarta-feira, dia 1/9/2021, uma decisão crucial a respeito do futuro das relações de trabalho no país. Trata-se de deliberar sobre a conversão da MP 1045/2021 em lei.
Assim como ocorreu com a reforma trabalhista de 2017, cuja tramitação legislativa se realizou em prazo recorde de 3 meses, sem diálogo com a sociedade e, sobretudo, com a classe trabalhadora, essa denominada “minirreforma trabalhista” – que, de “mini”, não tem nada – é resultado da prática inconstitucional de enxertar temas estranhos à matéria objeto da medida provisória. Essa prática, corriqueira no Congresso Nacional brasileiro, ficou conhecida como a inclusão de “jabutis”.
A MP 1045, originalmente, tratava do programa emergencial de emprego e renda – política que autoriza, no contexto da pandemia, acordos para suspensões dos contratos de trabalho e para redução de jornada e de salário, com pagamento pela União de benefícios aos trabalhadores afetados. Importante assinalar que esse conteúdo afastava os sindicatos e a negociação coletiva dessas medidas (reedição, para o ano de 2021, da MP 936/20, já convertida na Lei nº 14.020/20).
Entretanto, o PL de Conversão (PL 17/2021), aprovado pela Câmara dos Deputados, aprofundou a reforma das regras trabalhistas, sempre em prejuízo dos trabalhadores.
A primeira mudança é a inserção de três novas modalidades contratuais precárias: 1) o Programa primeira oportunidade e reinserção no emprego (PRIORE); 2) O Regime especial de trabalho incentivado, qualificação e inclusão produtiva (REQUIP); 3) e o Programa Nacional de prestação de serviço social voluntário.
Essas novas modalidades contratuais merecem especial atenção, visto que radicalizam a flexibilidade e o rebaixamento dos custos de contratação do trabalho. Todas as três modalidades criadas excluem, no todo ou em parte, o recolhimento de contribuições previdenciárias, que passam a poder ser feitas, facultativamente, pelos trabalhadores precarizados. Essa opção legislativa, além de fragilizar as fontes de financiamento da seguridade social, no caso da exclusão total (REQUIP e voluntário), implica que não haja obrigatoriamente a contagem do tempo de contribuição para o trabalhador poder ter direito à aposentadoria no futuro
PRIORE – Programa primeira oportunidade e reinserção no emprego
O PRIORE (que retoma a proposta da prometida carteira de trabalho verde e amarela) introduz a possibilidade de contratos com direitos extremamente rebaixados: o contrato tem duração de 24 meses, é voltado para jovens de 18 a 29 anos ou para maiores de 55 anos, e condicionado à criação de novos postos de trabalho em relação ao ano de 2020. A esses trabalhadores não seriam assegurados os direitos previstos em acordos e convenções coletivas que contrariem a norma; as parcelas de 13º e férias seriam pagas de modo fracionado, mês a mês; e a alíquota do FGTS e a respectiva multa seriam reduzidas.
REQUIP – Regime especial de trabalho incentivado, qualificação e inclusão produtiva.
Os contratados no REQUIP são absurdamente excluídos do vínculo empregatício. Além de não terem direitos trabalhistas típicos, o pagamento é feito por meio de uma bolsa, que tem como referência o salário-mínimo hora. Ainda mais, como agregou-se uma vaga ideia de qualificação nesta modalidade (de até 11 horas semanais e 44 mensais, em curso que pode ser “oferecido” pelo próprio empregador), há previsão de subsídio público (desoneração tributária) para as empresas que contratarem jovens de 18 a 29 anos, pessoas sem vínculo formal há mais de dois anos, ou pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade econômica. O aporte do governo para esse “não-trabalhador” (ou para esse “não-cidadão”), que depende da prestação de serviços, será descontado do FAT e do Fundo de Combate à Pobreza.
Tudo para beneficiar o empregador com trabalho barato, exigindo como a única contrapartida patronal, um curso de formação que pode ser fornecido por ele mesmo e, por isso mesmo, com possibilidades limitadas de fiscalização pública.
Trata-se de invencionice sem comprovação real, de facilitar para as empresas, reduzindo custos, para alimentar a ilusão de que essas medidas irão contribuir com a geração de postos de trabalho. Na verdade, se está criando uma nova categoria de trabalhadores sem direitos e sem representação coletiva. De acordo com a redação submetida ao Senado, esses trabalhadores não são nem empregados, nem aprendizes, nem estagiários, tampouco configuram uma categoria profissional.
“Trabalho voluntário”
A terceira modalidade é a previsão do “trabalho voluntário” nos municípios, que passam a poder contratar sem vínculo e sem concurso público pessoas entre 18 a 29 anos e maiores que 50 anos, por até 18 meses, com jornadas de 48h mensais, limitadas a 6 horas por dia e até 3 dias por semana, para uma “contraprestação pecuniária mensal” que respeite o valor do salário mínimo hora. Sim, trata-se de trabalho voluntário remunerado, uma contradição em termos, que compromete toda a lógica da proposta e abre margens para fraudes e improbidade administrativa, com recursos da União, além de trabalho precário.
Outras alterações
Além das novas modalidades de contratação, o PL 17/2021 traz, colocados nas disposições finais e transitórias da lei, outras medidas que aprofundam a flexibilização e deixam os trabalhadores ainda mais desprotegidos à acumulação do capital:
A jornada de trabalho apresenta duas “novidades”: a possibilidade de extensão do horário de trabalho em minas de subsolo em até 12 horas e a redução, pela metade, do valor das horas extraordinárias das categorias com jornada legal de 6 horas (a exemplo dos bancários e telemarketing). Tratam-se de medidas que acentuam a mesma perspectiva da reforma de 2017 de ampliar a liberdade de o empregador determinar o uso do tempo dos assalariados.
A nova ofensiva de fragilização das instituições de regulação do trabalho se expressa, ao (1) praticamente inviabilizar o sistema de fiscalização, com a previsão de o auditor fazer duas visitas “pedagógicas” antes de autuar e multar as empresas, inclusive inclusive nas situações do trabalho análogo ao escravo e de trabalho infantil, desde que não digam respeito à configuração da situação e ao (2) limitar o controle da justiça do trabalho sobre a homologação dos acordos extrajudiciais e enrijecer (ainda mais) os critérios para a gratuidade da justiça (pressuposto essencial para o acesso à justiça pela maior parte da população). O PL demonstra que o até o conceito de absurdo é relativizável.
Por último, dá continuidade ao ataque às organizações sindicais, ao prever a possibilidade da negociação direta entre empregado e empregador, negando toda a histórica necessidade de proteção diante da relação assimétrica entre capital e trabalho.
A falsa dicotomia entre direito ao trabalho e direito do trabalho
É muito difícil transmitir o que são as mudanças proposta nos jabutis da MP 1045 sem apontar o movimento que radicaliza a desconstrução dos direitos e das proteções dos que precisam trabalhar para sobreviver.
Não existe comprovação de que os contratos atípicos das reformas dos anos 1990 e de 2017 (contrato de trabalho parcial e contrato de trabalho intermitente) tenham contribuído para resolver o problema da geração de emprego ou melhorado a economia. A aposta continua a ser uma não-solução ao conferir às empresas mais poder nas condições de contratação, de uso e de remuneração do trabalho.
As mudanças são, não uma solução para o problema do emprego, mas, sim, uma contribuição para ampliar (1) a precarização do trabalho, inclusive dos atuais empregados que serão cada vez mais pressionados a aceitar rebaixar os seus direitos e vencimentos; (2) a vulnerabilidade dos que já se encontram maiores dificuldades de ter trabalho de qualidade e digno, que são os jovens e aqueles com idades mais avançadas; (3) e, ainda, abre a possibilidade de que trabalhadores efetivos sejam substituídos por estas modalidades sem que seja possível detectar essas ilegalidades, pela cada vez maior fragilização das instituições de regulação.
Portanto, caso seja aprovado no Senado, o PL de conversão da MP 1045 será mais uma mudança legislativa com graves consequências para a construção de uma nação mais inclusiva, democrática, e com melhor distribuição da riqueza produzida.
Chama a atenção o fato desse processo estar sendo conduzido sem debates e com pouca divulgação. Em uma conjuntura em que governo ataca insistentemente as instituições, estamos assistindo passar no Congresso Nacional uma pauta contrária aos interesses nacionais e aos que vivem do trabalho. A defesa da democracia, crucial neste no momento do país, precisa incluir a dimensão social e resistir a ofensiva antidemocrática contra os direitos trabalhistas e sociais.
[i] Professor Livre docente do Instituto de Economia da UNICAMP. Membro da REMIR – Rede de estudos e monitoramento interdisciplinar da reforma trabalhista.
[ii] Professora Adjunta de Direito do Trabalho da UNB. Membro da REMIR – Rede de estudos e monitoramento interdisciplinar da reforma trabalhista.
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