Na quarta-feira (27/10), o plenário do Supremo Tribunal Federal deu início à leitura de votos no julgamento conjunto das ADI’s 6050, 6069 e 6082, sob relatoria do ministro Gilmar Mendes, que discutem a inconstitucionalidade do art. 223-A e dos incisos I, II, III e IV, do § 1°, do art. 223-G, todos da Consolidação das Leis do Trabalho (incluídos pela Lei 13.467/2017). Tais dispositivos são voltados à caracterização e à tarifação do dano extrapatrimonial decorrente das relações de trabalho segundo o grau de intensidade do dano sofrido e utilizando, como base de cálculo, o salário contratual do trabalhador ofendido. As ações foram ajuizadas, respectivamente, pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI).
A ADI 6050, em específico, questiona a constitucionalidade da tarifação do dano moral trabalhista no que tange à sua fixação em fase judicial. Sob os robustos argumentos de cerceamento do Poder Judiciário e de sua função jurisdicional e tutelar dos direitos dos trabalhadores, a ação alega que o uso do “salário contratual do ofendido” como critério de definição da indenização a ser paga, em razão do dano extrapatrimonial causado, traduz dinâmica geradora de significativas disparidades quanto aos valores indenizatórios devidos e contrária ao princípio da reparação integral do dano (art. 5°, V e X, da Constituição Federal de 1988).
Para além, a definição de limites máximos da indenização a partir do grau da ofensa gerada, que pode variar entre três, cinco, vinte e cinquenta vezes o salário contratual do ofendido (de acordo com a caracterização do dano enquanto leve, médio, grave ou gravíssimo, respectivamente), acaba representando um novo limite à ampla apreciação judicial da lesão extrapatrimonial causada e de sua ampla e suficiente reparação.
Segundo manifestação da Procuradoria-Geral da República nos autos da ADI 5870 (utilizado enquanto manifestação também na ADI 6050), favorável à declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos impugnados e, ainda, favorável à declaração de inconstitucionalidade por arrastamento dos arts. 223-C e 223-G, §§ 2° e 3°, todos da CLT, a tarifação legal, em caráter prévio e abstrato, afeta a efetivação da reparação integral do dano extrapatrimonial na medida em que abre espaço para situações nas quais a indenização fixada segundo parâmetros legais preestabelecidos pode não conferir adequada compensação do prejuízo extrapatrimonial, ampla e proporcional ao agravo e à capacidade financeira do infrator.
Neste sentido, verifica-se a própria inexistência de tal tarifação prévia na esfera cível, uma vez que o próprio STF se posicionou (RE 396.386/SP) no sentido da não recepção do art. 52 da Lei de Imprensa (Lei 5.250/1967), que pré-fixava parâmetros para indenização de natureza cível no âmbito deste diploma legal, por força do princípio da reparação integral do dano consagrado pelo texto constitucional de 1988. Com isso, não há justificativa plausível para que se sustente a aplicação da dinâmica tarifária à indenização na seara trabalhista, sob pena de quebra da lógica e da isonomia nos mecanismos de reparação do dano extrapatrimonial ou moral.
Partindo desta premissa, o voto proferido pelo ministro Gilmar Mendes se direcionou no sentido da declaração parcial de inconstitucionalidade dos dispositivos impugnados nas ações. Ao considerar os critérios inseridos no art. 223-G, da CLT, como aptos a auxiliar o Juízo na identificação e na mensuração do dano extrapatrimonial, o ministro relator ponderou que tais critérios não podem funcionar enquanto teto à reparação integral e suficiente do dano gerado. Com isso, assentou que a dinâmica de tarifação pode ser utilizada enquanto parâmetro, mas o estabelecimento do quantum indenizatório poderá exceder os limites máximos previstos nos incisos do art. 223-G, § 1°, da CLT.
Ainda, mediante análise dos arts. 223-A e 223-B, o relator sustentou a possibilidade de caracterização do dano moral indireto (ou dano em ricochete) nas relações de trabalho, não havendo que se falar em direito exclusivo da pessoa física ou jurídica ofendida à reparação do dano causado.
Assim, o ministro Gilmar Mendes votou no sentido de conhecer das ADI’s ajuizadas e julgou parcialmente procedentes os pedidos, para conferir interpretação conforme à Constituição, e estabelecer que:
“1) As redações conferidas aos art. 223-A e 223-B, da CLT, não excluem o direito à reparação por dano moral indireto ou dano em ricochete no âmbito das relações de trabalho, a ser apreciado nos termos da legislação civil; 2) Os critérios de quantificação de reparação por dano extrapatrimonial previstos no art. 223-G, caput e § 1º, da CLT deverão ser observados pelo julgador como critérios orientativos de fundamentação da decisão judicial. É constitucional, porém, o arbitramento judicial do dano em valores superiores aos limites máximos dispostos nos incisos I a IV do § 1º do art. 223-G, quando consideradas as circunstâncias do caso concreto e os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da igualdade (...)”.
Em seguida, o ministro Nunes Marques pediu vista dos autos e o julgamento foi suspenso sem data para ser retomado.
A discussão tratada, para além da tese de cerceamento da atuação de juízas e juízes trabalhistas fortemente sustentada nas petições iniciais, suscita um outro ponto de inegável importância, que é a própria afirmação, em caráter reparatório, de direitos fundamentais trabalhistas inerentes à personalidade de todo trabalhador, ou seja, de parte do núcleo central e inviolável de direitos componentes da dignidade humana destes sujeitos.
Neste sentido, Jorge Luiz Souto Maior ressalta o caráter de fundamental importância da declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos que promovem o tabelamento e a limitação da reparação ao dano moral trabalhista. Ele aponta que a tarifação da indenização por dano moral nas relações trabalhistas, ao promover limitação ao princípio da reparação integral do dano (por sua vez, aplicável à generalidade das pessoas) na seara trabalhista, termina por criar uma “esdrúxula situação de que a relação de emprego se transformaria em um fator de rebaixamento da condição humana.”.
O teor de evidente “rebaixamento da condição humana dos trabalhadores e trabalhadoras na comparação com todos os demais cidadãos e cidadãs”, ressaltado pelo professor, e que norteia o art. 223-G, da CLT, acaba por denunciar mais uma manifestação da regulação neoliberal do trabalho que conduziu a reforma trabalhista em seu veloz e voraz processo de destruição de direitos e garantias conquistadas pela classe trabalhadora.
Trazida à realidade, como bem apontado por Souto Maior, a reparação integral do dano moral derivado das relações de trabalho se presta ao reconhecimento social e à garantia de mínima dignidade (ainda que em caráter reparatório) ao trabalho humano desenvolvido nas mais arriscadas e precárias funções produtivas, as quais se mostram recorrentemente permeadas por violações aos direitos de personalidade das trabalhadoras e dos trabalhadores que nelas atuam.
Se levado em conta o cenário de crescente precarização do trabalho humano e, ainda, ressaltado o contexto da pandemia de Covid-19 e os cotidianos relatos de trabalhadores submetidos a condições diuturnas de risco ao adoecimento físico e psíquico, Souto Maior é certeiro: o movimento de “valorização cultural e jurídica do trabalho e da condição humana de quem trabalha” perpassa, dentre tantas e outras medidas, pela inevitável e necessária declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos impugnados pela ADI 6050.
Referências
MAIOR, Jorge Luiz Souto. ADI 6050: a hora da verdade para o reconhecimento da condição humana de nossas heroínas e nossos heróis. São Paulo: Esquerda online, 26 de outubro de 2021. Acesso em 28/10/2021. Link: https://www.observatoriotrabalhistadostf.com/post/o-stf-a-corre%C3%A7%C3%A3o-monet%C3%A1ria-dos-d%C3%A9bitos-trabalhistas-e-o-dever-de-coer%C3%AAncia
Texto elaborado por Henrique Araujo e Fernandes, com o apoio da equipe do Observatório.